OPINIÃO: O direito humano à reeleição presidencial indefinida na América Latina

   


    

       A existência de um direito humano à reeleição presidencial indefinida é um artigo controverso no mundo jurídico, principalmente na América do Sul. No que diz respeito a regulamentação da reeleição presidencial, a atuação dos Poderes Judiciários da América Latina se limitou a resolver questões relacionadas aos requisitos formais do processo legislativo.

    Apenas em casos excepcionais, os tribunais nacionais foram chamados para interpretar disposições sobre reformas ou novas Constituições Políticas que consagraram a reeleição presidencial.  Em adição às questões nacionais, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, fundamentada pelo Pacto de San Jose da Costa Rica, tem suas próprias disposições aceca do tema, disposições essas que por força de soberania são obrigatórias para todas as nações que assinaram o Pacto.

      Para ter uma noção geral da situação, podemos lembrar da situação boliviana. Em 2016, o governo de Evo Morales realizou um referendo para consultar a população sobre a anulação da proibição constitucional de reeleição indefinida. Ele gostaria, por essa emenda, que a população por si permitisse a reeleição indefinida. A emenda constitucional foi rejeitada durante o referendo. Meses depois, o Tribunal Constitucional do país reconheceu o direito de Morales a disputar sua quarta eleição presidencial consecutiva, decisão tomada com base no artigo 23 da Convenção Americana. Importante mencionar que os integrantes do tribunal que decidiram, apoiavam ou haviam sido indicados, pelo partido do governo, ou seja, não fora puramente uma decisão jurídica.

      O artigo 23 consiste em direitos genéricos para participação política de votação e expressão de vontade. Não trata, de forma direta, do tema de reeleição presidencial indefinida. Dessa forma, este não se constitui em um direito autônomo protegido pela Convenção Americana e pela jurisdição dos direitos humanos.

      A Opinião Consultiva 28/2021, emitida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, traz este mesmo entendimento, de que não cabe como fundamentação direta o artigo 23, visto que de leitura simples já extrai-se a plenitude da democracia e da manutenção do poder do povo. A Opinião Consultiva foi solicitada pelo presidente da Colômbia, Ivan Duque, em 2019, principalmente pelo que à época ocorria na Bolívia. Mas a Nicarágua e Honduras também se apoiaram no Pacto de San José para ampliar a reeleição de seus governantes. Evo Morales declarou que tudo isso, toda essa resistência à sua reeleição, era um ataque golpista da direita para desestabilizar politicamente a democracia, mas precisamos ter uma leitura mais fria da situação.

      Todo o tema se justifica pela necessidade democrática de impedir que as maiorias fiquem no poder à custa das minorias. “A habilitação da reeleição presidencial indefinida é contrária aos princípios de uma democracia representativa”, indica a jurisprudência interamericana. A Corte considera ainda que a proibição “procura evitar que as pessoas que exercem cargos por eleição popular se perpetuem no exercício do poder”.

      A sua fundamentação doutrinária destacou que os Estados assumiram que a democracia representativa é a base do sistema interamericano e inclui a obrigação de evitar a perpetuação de uma única pessoa no poder, o que por si só, convenhamos, não exclui completamente a ameaça antidemocrática.

      As mudanças eleitorais para perpetuação do poder não podem ocorrer visando minar a oposição, sendo este um Estado democrático. O estado possui uma obrigação positiva de adotar medidas e condutas para cumprir a obrigação de garantir um sistema eleitoral em que as eleições sejam periódicas, autênticas e plurais, através do sufrágio universal e secreto, que é a natureza da democracia.

      Os exemplos da Bolívia e outros países Latino-americanos refletem a atuação partidária de suas cortes constitucionais com o objetivo de interpretar alternativamente a Convenção Americana e extrair do artigo 23 um direito humano que jamais foi reconhecido pela Corte dos DH, sem qualquer embasamento jurídico.

      Isto consiste em um uso enganador por meio da conveniência, que vai além da competência das cortes nacionais em relação à Interamericana e se move para a esfera de competência do poder constituinte, em seus respectivos países, já que tal definição sobre a reeleição é dever de atribuição do poder originário.

      Na minha opinião, em primeiro momento a reeleição indefinida reflete a corrosão de um dos pilares mais básicos de uma democracia representativa, a alternância no poder. Estabelecido o sistema constitucional democrático, acredito que o correto é segui-lo à risca, mas sempre lembrando a fonte do poder na democracia: o Povo. Dito isso, não parece razoável argumentar que a proibição absoluta de reeleição indefinida é uma condição da democracia representativa. A saída é que, buscando uma decisão sobre a melhor maneira de estabelecer tais regras, tudo recai sobre a consulta direta à cidadania, devendo, caso haja dúvida ante o poder constituinte, haver a consulta pública. Quanto à reeleição indefinida ser um direito fundamental, não há essa possibilidade, visto que ela é um tema extraído de um contexto infinitamente maior, com embasamento jurídico, e não provém de uma fonte jusnaturalista de direitos.

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